Não existe complemento circunstancial!
Com os avanços dos estudos linguísticos, o complemento circunstancial voltou à discussão. Isso, contudo, é injustificado. Afinal, essa categoria sintática não é c-selecionada nem s-selecionada, como evidente em “Ele mora [em Jacarepaguá]”, “Ele mora [bem]” e “Ele mora [sozinho]”.
Na Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), as classificações de complemento relativo (“O Diogo gosta [do Flamengo] ”) e de complemento circunstancial (“O Alessandro mora [em Jacarepaguá]”), apontadas por Rocha Lima (2011) foram abandonadas; elas foram conjugadas, respectivamente, aos rótulos de objeto indireto e adjunto adverbial. No entanto, estudos linguísticos contemporâneos do português resgataram esses conceitos (cf. DUARTE, 2018). De fato, a distinção entre objeto indireto de (1) e complemento relativo de (2) é clara: apenas aquele é marcado com caso dativo, o que permite a substituição pelo pronome clítico “lhe”:
(1) a. O Mario enviou a carta à Clara.
b. O Mario enviou-lhe a carta.
(2) a. O Diogo gosta do Flamengo.
b. *O Diogo gosta-lhe.
Aliado a isso, os objetos indiretos possuem, tipicamente, traço [+animado] e recebem papel temático de beneficiário/alvo. Há, portanto, motivações sintáticas nessa divisão. O objetivo deste trabalho, contudo, é mostrar que o resgate da noção de complemento circunstancial, em oposição ao adjunto adverbial, é infundado. A ideia de uma categoria sintática “de natureza adverbial – tão indispensável à construção do verbo quanto, em outros casos, os demais complementos verbais” (ROCHA LIMA, 2011, p. 311) baseia-se somente em fatores semânticos, enquanto o privilégio desse critério na tradição gramatical é duramente criticado pelos próprios trabalhos que retomam essa classificação: “[as definições das gramáticas tradicionais] misturam critérios semânticos e sintáticos” (DUARTE, 2018, p. 185). Uma análise a partir do arcabouço teórico da Teoria Gerativa, sobretudo em sua formulação lexicalista chomskyana, deixa evidente que o chamado complemento circunstancial não é c-selecionado nem s-selecionado pelo verbo, como fica evidente em “O Alessandro mora [em Jacarepaguá]”, “O Alessandro mora [bem]” e “O Alessandro mora [sozinho]”. Isto é, os sintagmas em questão não são subcategorizados pelos verbos e não recebem papel temático regularmente de seu (suposto) predicador – ao contrário do que é esperado em relações argumentais. O verbo “morar” é, flagrantemente, intransitivo – e não transitivo circunstancial. A inaceitabilidade de sentenças como “O Alessandro mora” é equivalente à de sentenças como “Chove”, cujo verbo é amplamente reconhecido como intransitivo; ela não é resultado de uma derivação sintática falha, em que a grade argumental esteja incompleta, mas sim de uma estranheza de natureza pragmática. Essas sentenças transmitem, afinal, informações óbvias: todo mundo mora (seja em algum lugar, de algum modo ou com/sem alguma companhia). O que há, nesses casos, é a quebra da máxima da quantidade (GRICE, 1975).